Rita Leote

Diretora Executiva da Plataforma Portuguesa das ONGD


Da perspetiva da Plataforma Portuguesa das ONGD, quais acredita serem os maiores desafios na implementação da nova Estratégia para as relações entre a UE e África (“Uma parceria entre iguais”)?

A Plataforma Portuguesa das ONGD promoveu, ao longo da Presidência Portuguesa do Conselho da UE, uma reflexão alargada e inclusiva sobre as relações entre a União Europeia e África, tendo convocado atores públicos e da sociedade civil, da Europa e de África, para um diálogo político em torno das prioridades e condições para garantir uma parceira genuína entre iguais, o que na nossa perspetiva constitui um dos maiores desafios desta relação, considerando o passado marcadamente assimétrico da sua construção.

A pandemia de Covid-19 atrasou alguns processos em curso, tendo por exemplo impedido a realização da VI Cimeira UE-África em 2020, e demonstrou que ainda há muitos aspetos a melhorar, tendo aportado novos desafios ao relacionamento. A crise económica e social sentida em todo o mundo em consequência das restrições impostas pela pandemia condicionou, do lado europeu, e perante a necessidade de recuperação económica, uma abordagem mais assente em interesses internos do que em questões de solidariedade internacional. Acreditamos por isso que esta realidade, em vez de reforçar a importância de criar soluções globais para os desafios atuais, que seria a opção mais acertada considerando a interdependência dos fenómenos que nos assolam a todos e todas, possa resultar numa menor preponderância de África nas agendas políticas e uma reafirmação da instrumentalização da relação da UE com África para responder a questões de segurança europeia, para uma gestão mais condicionada das migrações e para expandir oportunidades de comércio e investimento.

A este fator é importante acrescentar a crescente abordagem geopolítica por parte da UE em relação a África, num contexto de grande competitividade entre vários países e blocos económico-políticos por um lugar cimeiro na liderança a nível global, e na área da cooperação para o desenvolvimento em particular, que condicionará as opções e as condições de diálogo entre UE e África, podendo distanciar a concertação dos aspetos que permitiriam responder às aspirações e necessidades africanas, diluindo a centralidade da erradicação da pobreza enquanto objetivo principal da política de cooperação para o desenvolvimento da UE.

Neste sentido, uma questão que nos preocupa e que temos evidenciado em vários momentos, refere-se ao contexto atual de diminuição dos orçamentos de ajuda pública ao desenvolvimento e a centralidade crescente das prioridades internas nos discursos e práticas dos doadores. Esta situação contrasta com uma realidade em que se verifica, não somente um aumento exponencial das necessidades humanitárias e de desenvolvimento, mas também fortes retrocessos em ganhos de desenvolvimento conseguidos ao longo das últimas décadas.

Na nossa perspetiva também será determinante reafirmar os valores democráticos no quadro da parceria, sendo fundamental a proteção e promoção do espaço de ação da sociedade civil de ambos os continentes. Num momento em que a nível global se denota um recrudescimento de movimentos e governos autocráticos e repressivos um pouco por todo o mundo, com uma regressão preocupante nas liberdades e garantias, urge garantir o reforço do diálogo com cidadãos e cidadãs e com a sociedade civil de ambos os continentes, que permita identificar as reais necessidades e possíveis soluções para os desafios ao desenvolvimento.

Em suma, entendemos que existem dois desafios centrais: por um lado, que a relação UE-África se torne efetivamente numa parceria entre iguais, com maior cooperação mútua, benefícios comuns, corresponsabilização, menor assimetria e maior inclusão e, por outro, que no âmbito desta parceria as políticas de cooperação para o desenvolvimento devem preservem a sua integridade, espaço de atuação e objetivos principais.


Qual seria a melhor forma de as estruturas oficiais do estado português manterem um papel ativo na moderação e intermediação das relações entre a UE e África, posteriormente à PPUE? E quais acredita serem as áreas em que esta presença teria maior relevância?

Portugal tem assumido um papel construtivo nas relações UE-África, que decorre naturalmente das suas prioridades de política externa, tendo vários marcos desse relacionamento sido conseguidos no quadro de presidências portuguesas do Conselho da UE. Concomitantemente, Portugal tem agido como facilitador para que seja concedido mais apoio no plano multilateral aos interesses e necessidades dos países de baixo rendimento e mais vulneráveis. No quadro da presidência terminada a 30 de junho, Portugal reforçou a importância do Desenvolvimento Humano na abordagem das políticas de desenvolvimento da UE, tendo proporcionado o espaço para recentrar a atenção da União e dos seus Estados Membros na importância da construção de políticas e abordagens centradas nas pessoas, algo que, considerando a crescente abordagem geopolítica da UE, claramente tinha perdido espaço a nível europeu. Adicionalmente, houve a preocupação, da parte do estado português, em promover um diálogo mais inclusivo com parceiros africanos, nomeadamente através da realização da iniciativa Green Talks que precedeu o Fórum de Alto Nível UE-África sobre Investimento Verde, realizado em abril. Permita-me, no entanto, assinalar que, no que ao campo da inclusão diz respeito, a Presidência Portuguesa ficou aquém no que ao envolvimento da sociedade civil europeia e africana diz respeito, tendo existido muito poucas oportunidades de participação e diálogo interinstitucional durante o semestre da presidência.

Para manter um papel ativo na moderação e intermediação das relações entre a UE e África, Portugal deverá, antes de mais, nas instâncias europeias próprias, contribuir para a promoção de uma mudança de paradigma para um relacionamento mais inclusivo, justo, equitativo e sustentável com África, em que a cooperação mútua, os benefícios comuns, a corresponsabilização sejam concretizadas, e em que haja menor assimetria e maior inclusão entre as partes, incluindo a preocupação de integrar na relação a diversidade de stakeholders relevante. Como referido antes, é fundamental também que Portugal valorize a importância de garantir a integridade e qualidade das políticas de cooperação para o desenvolvimento e a centralidade do combate à pobreza e às desigualdades como seus objetivos principais. Este papel só poderá ser arrogado no plano europeu se Portugal o assumir e garantir a nível nacional. Para tal, a construção de uma política de cooperação futura forte, mais eficaz e coerente será determinante.

Num momento em que se encontra em curso o processo de definição da nova Estratégia da Cooperação Portuguesa 2022-2030, Portugal deverá, na sua relação com os seus países parceiros em África, assegurar as condições necessárias para garantir um relacionamento inclusivo, justo, equitativo e sustentável a nível bilateral, de modo a afirmar-se como exemplo de boas práticas internacionais e beneficiar do reconhecimento dos seus pares, capitalizando para o plano europeu as vantagens comparativas que tem no relacionamento com o continente africano.

Esta recomendação, a par de muitas outras, tem sido veiculada pela Plataforma Portuguesa das ONGD e suas mais de 60 Associadas, na sequência de um processo de reflexão interno sobre o futuro da cooperação portuguesa que se materializou na publicação da “Visão da Plataforma Portuguesa das ONGD sobre o futuro da Cooperação Portuguesa”, um documento que pretende contribuir para o processo de discussão sobre a nova Estratégia ao sistematizar os elementos que, na perspetiva das ONGD, são essenciais para potenciar o contributo de Portugal na construção de um mundo justo e sustentável.


No mesmo sentido, qual seria a melhor forma das ONGD portuguesas continuarem a desempenhar um papel ativo neste âmbito? Quais seriam as áreas em que esta presença poderia ter maior relevância?

A definição de estratégias a nível nacional ou multilateral e de políticas públicas não pode ser feita sem a participação e contribuição efetiva da sociedade civil. Sabemos que a vitalidade da sociedade civil e o seu maior envolvimento na definição, implementação e avaliação das políticas, não só incrementa o potencial de contribuição efetiva na resposta às necessidades e aspirações das populações, dada a proximidade das organizações da sociedade civil às populações, em especial as mais vulneráveis e excluídas, como é também essencial para reforçar a democracia e o desenvolvimento sustentável. Para a Plataforma, isto significa que, sem a devida participação da Sociedade Civil em toda a linha dos processos das políticas de desenvolvimento (definição, implementação, monitorização e avaliação), a sustentabilidade e a adequação das ações implementadas não podem ser tomadas como garantida. 

No que concerne especificamente as ONGD portuguesas, enquanto agentes com uma presença vincada em países parceiros da Cooperação Portuguesa, estas organizações acumulam conhecimento valioso adquirido no terreno que lhes permite, não só percecionar as necessidades e desafios em cada conjuntura, mas também alertar para a necessidade de investir na consciencialização e compreensão das causas e problemas do desenvolvimento e das desigualdades a nível local e global, através de um trabalho muito relevante realizado ao nível da Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global.

As ONGD têm um amplo know-how e experiência não apenas em áreas setoriais, como a educação ou a saúde, mas também na monitorização e seguimento das políticas públicas e da ação dos Estados, pelo que garantir a coerência entre as políticas depende também das dinâmicas de articulação entre o Estado e a Sociedade Civil.

No que concerne à relação UE-África em particular, consideramos crucial que sejam assegurados e operacionalizados mecanismos estruturados e formais para a consulta e envolvimento da sociedade civil europeia e africana, investindo no papel das Organizações da Sociedade Civil enquanto parceiras no diálogo político, na implementação e na monitorização de programas.

Ao mesmo tempo, a Plataforma Portuguesa das ONGD tem defendido que um entendimento mais ambicioso da noção de parceria deveria integrar a preocupação de envolver também as organizações da Sociedade Civil dos países parceiros. A apropriação das políticas de desenvolvimento por parte dos países parceiros não ficará completa sem o envolvimento da sua Sociedade Civil. Para isso, seria importante promover o envolvimento da Sociedade Civil dos países parceiros na discussão sobre as prioridades da cooperação para o desenvolvimento com os seus países. Consideramos esta abordagem particularmente relevante considerando o fraco desempenho de alguns países africanos em matéria de proteção do seu espaço cívico.


Acredita que existirá uma mudança no padrão de ação das organizações-não-governamentais em África, no sentido de acompanharem a alteração do paradigma de relações entre a União Europeia e África, no sentido de uma parceria entre iguais? Se sim, em que sentido?

Pelas razões que apontei anteriormente, nomeadamente relativas à importância de construir uma parceria genuína promotora de cooperação mútua, benefícios comuns, e corresponsabilização, é sem dúvida necessário romper com práticas passadas de assimetria na relação e de garantir uma maior inclusão (como os movimentos #Shiftthepower ou #AfricaRaising o demonstram).

Todos os stakeholders serão convocados a contribuir para a mudança do paradigma na relação com o continente africano. As ONGD não serão exceção. Há organizações da sociedade civil do Norte Global que se têm posicionado cada vez mais num papel de advocacy nos seus próprios países e menos como prestadoras de serviços nos países do Sul Global, havendo também uma aposta na complementaridade de competências entre organizações do Norte e do Sul e no trabalho em redes globais de caráter cada vez mais horizontal, por exemplo.

As ONGD portuguesas têm muita experiência de trabalho conjunto com organizações da sociedade civil dos países onde operam, pelo que acredito que estarão já a viver este processo de transformação e a aprofundar o trabalho conjunto com organizações da sociedade civil dos países parceiros.

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